sexta-feira, 3 de julho de 2009

Uma questão de Identidade


Hélio Márcio Gonçalves da Silva[1]



Então disse Deus: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Gn 1,26




A questão da identidade interpela o ser humano desde sua criação. Vivemos momentos angustiantes com relação a esta temática.
Podemos dizer que de forma existencial, existe hoje, diante de tantos desencontros e tensionamentos, uma crise humana de identidade?
A polêmica é grande. Se para a antropologia filosófica e as demais ciências humanas e sociais a questão não é pacifica, será possível encontrarmos “portos seguros” com relação a este assunto? Quem tem a razão no debate?
Mais do que fazermos uma exposição ou fechamento sobre a posição das correntes de pensamento, percebível nas razões e des-razões de “ modernos” e pós-modernos”, quero lembrar apenas uma situação muito importante, definidora de felicidade e por que não ”sanidade” para todos nós que “ vivemos debaixo do sol”.
O ser humano não deve fugir, ou negar a sua identidade fundante. Todas as experiências de fuga, de transtorno dessa identidade fundante, original, resultaram na desumanização, ou seja, na completa descaracterização de seu ser. Mas que identidade é essa?
Diante da quantidade de conceitos, e aplicações: identidade cultural, social, funcional, institucional, grupal, etc... Pareceu-nos mais interessante eleger a identidade pessoal como característica mais profunda do que buscamos compreender nesta pequena reflexão.
Segundo Clara Costa Oliveira , “Parece irrefutável que a identidade pessoal emerge sobretudo da percepção interna (em linguagem filosófica) que os indivíduos humanos possuem de si próprios, ou das representações neurais que os indivíduos constroem de si próprios (em linguagem mais científica). Sendo, no entanto, os seres humanos organismos de terceira ordem (Maturana e Varela, 1972), temos que eles produzem a representação sobre si próprios inseridos em comunidades nas quais vivem, ou seja, as representações identitárias sobre nós próprios emergem (em indivíduos saudáveis) de co-construções que ocorrem nos sujeitos-nichos que constituem unidades complexas.”[2] Ou seja, como nos caracterizamos, percebemo-nos e mostramo-nos. Daí que o grande problema da “ crise de identidade” existencial humana seria o inverso, qual seja, a des-caracterização, a falta de percepção de si mesmo, a alteração do ser ( vir-a-ser-outro).
A Bíblia nos mostra vários exemplos dessa des-caracterização, ou seja, desse des-caráter, “ ficar sem cara”, sem o rosto que nos identifica. Saul foi um deles, perdeu essa identidade. Depois de ficar com raiva e inveja de Davi, “No dia seguinte, um espírito maligno mandado por Deus apoderou-se de Saul e ele entrou em transe (transtornado, surtado, descaracterizado)[3] em sua casa, enquanto Davi tocava harpa, como costumava fazer. Saul estava com uma lança na mão e a atirou, dizendo: Encravarei Davi na parede”. Daí em diante só ocorreram perseguições insanas e desespero a ponto de se chegar ao suicídio, a mais completa descaracterização humana. Outros casos de ira e inveja, traição e remorso, se repetem. Pedro sente vergonha, remorso, se esconde em si mesmo após “negar” o Mestre, tanto é que somente se reabilita após afirmar realmente seu amor por Jesus (Jo 21). Mas o mais profundo, o mais constrangedor, talvez pelo fato de ser o primeiro, é a situação vivenciada por Caim.
“O Senhor aceitou com agrado Abel e sua oferta, mas não aceitou Caim e sua oferta. Por isso Caim se enfureceu e o seu rosto se transtornou[4]. O Senhor disse a Caim: "Por que você está furioso? Por que se transtornou o seu rosto? Se você fizer o bem, não será aceito? Mas se não o fizer, saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo". Disse, porém, Caim a seu irmão Abel: "Vamos para o campo". Quando estavam lá, Caim atacou seu irmão Abel e o matou” Gn 4,4-8. Na narrativa vemos a des-caracterização, originada no ódio que gera a violência, o assassinato. O ser humano, como imagem e semelhança do Criador, em sua identidade original, não vivencia a violência, mas quando a inveja e o ódio, o transtornam, daí, “ esse desejo, tendo concebido, dá à luz o pecado, e o pecado, após ter se consumado, gera a morte.” Tg 1,15 .
É muito importante notar que Caim tem a chance de se definir em relação ao pecado, ao ódio que gerou a morte de seu irmão: “saiba que o pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo". A possibilidade de escolher entre o bem e o mal Deus nos lembrará novamente em Deuteronômio 30,15, "Hoje invoco os céus e a terra como testemunhas contra vocês, de que coloquei diante de vocês a vida e a morte, a bênção e a maldição. Agora escolham a vida, para que vocês e os seus filhos vivam”. Daí para frente tudo vai depender de quem esta mais fortalecido e alimentado dentro de si. Se alimentarmos o bem, conservaremos nossa identidade, ao passo que com a opção pelo mal, mudamos nosso rosto, encobrimos nossa identidade, nos transtornamos.
A questão da identidade é percebida também nos momentos que verificamos o seu realce, a sua afirmação. A Bíblia sustenta que Moisés “resplandecia o rosto” , quando trouxe ao povo as tábuas da Lei. E quanto a Jesus, a verdadeira face humana do Pai “Enquanto orava, a aparência de seu rosto se transformou, e suas roupas ficaram alvas e resplandecentes como o brilho de um relâmpago” nos narra o evangelho de Lucas. E Estevão, como testemunha fiel de Jesus, ficou com a ”aparência de anjo” no momento de seu martírio.

Como já havia afirmado no inicio da reflexão só pretendo lembrar aqui nossa identidade original, conditio sine qua non para experimentarmos a felicidade, impressa no nosso verdadeiro rosto. A Escritura diz que fomos feitos a imagem e semelhança do Senhor, e que este “Senhor Deus plantou um jardim”, ora um Deus que planta, cuida, cultiva, embeleza, é um Deus jardineiro![5] Que poético e forte! Remete-nos a reflexão sobre o que temos feito, qual jardim cultivamos, que cuidado temos tido com as flores e arvores de nossa pequena vida terrena.
Em um mundo onde o desamor, o descuidado, as misérias humanas, sociais, espirituais e existenciais tem crescido gradativamente, podemos com certeza responder a pergunta expressa no inicio do texto:sim, existe uma crise identitária humana com certeza. Mas não é de hoje, é de sempre, desde o momento em que renegamos a verdadeira “imagem e semelhança do Criador”. Jesus nos ensina que renegando a imagem e semelhança de Deus, o filho pródigo ficou parecido com os porcos (nada contra esses animais) que teve de cuidar para sobreviver, até comia a comida deles! Só conseguimos fazer a experiência de retorno à identidade originária, quando temos um modelo, um ícone, um paradigma a quem podemos recorrer para nos orientar. Jesus de Nazaré, pois: “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação” Col 1,15.
O mundo indubitavelmente precisa mais e mais de Jesus, se não for como sinal de fé, na forma religiosa, pois sempre existirão várias religiões, mas que seja como modelo, ícone, paradigma, ou como Ele mesmo definiu-se: Caminho, Verdade e Vida, o SER HUMANO em sua perfeita integralidade ontológica, única forma de vivermos plenamente nossa humanidade e voltarmos a ser parecidos com o pai, filhos do “Deus jardineiro”, que cultiva e guarda seu jardim.
[1] Professor da Rede Pública Estadual de Mato Grosso.
[2] IN: IDENTIDADE PESSOAL:Caminhos e Perspectivas . Francisco Teixeira (coordenação)Coimbra, Editora Quarteto, 2004.
[3] Grifo meu. NVI, Nova Versão Internacional.
[4] Grifo meu. NVI, Nova Versão Internacional.
[5] Gn 2,8