Deixar de debater um problema, ou ignorá-lo, jamais fará com que o mesmo possa ser sanado ou pelo menos combatido. Enfrentamos no Brasil, alguns problemas que ainda carecem de debates sérios e pontuais, que inobstantes estarem sendo feitos na Academia, precisam ser inseridos nas realidades diárias de todos nós. Falo aqui do debate sobre o racismo, o preconceito e a discriminação racial fortemente enraizados na sociedade brasileira e na maioria das vezes negado ou dissimulado. Daí surge à pergunta, onde as categorias acima descritas estão mais presentes? Lembro-me do slogan de uma campanha anti-racismo veiculada na televisão que perguntava: “Onde você guarda seu racismo?” A leitura e o conhecimento da pesquisa intitulada “Desigualdades Raciais no Brasil : um balanço da intervenção governamental” do IPEA [2] , sob a coordenação de Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin nos mostra claramente onde estão os espaços de discriminação racial e nos coloca em sintonia com o debate sobre as políticas afirmativas no Brasil.
Admitir as discriminações e os preconceitos com relação ao elemento racial no Brasil nos remete a discussão primeiramente ao confronto com o “mito da democracia racial” . A idéia das “três raças” fundadoras da nação e do povo, que aprenderam a conviver harmoniosamente e em condições de igualdade. O texto, altamente elucidativo expõe os números da desigualdade, quais sejam: desigualdade de renda e pobreza, desigualdades e discriminação no mercado de trabalho, desigualdades e discriminação na educação, de onde “depreende-se, com clareza que parte significativa das desigualdades raciais entre brancos e negros no país está diretamente vinculada à discriminação racial vigente tanto na escola como no mercado de trabalho” (Jaccoud e Beghin, 2002).
Dos elementos e categorias expostos, penso que o Estado Brasileiro deve ser o propulsor de Políticas Públicas que venham de encontro a esta realidade gritante, tendo como fundamento basilar, a tão propalada noção de cidadania:
“A cidadania se constitui pela e na criação de espaço sociais de lutas ( movimentos sociais, movimentos populares e movimentos sindicais) e pela instituição de formas políticas de expressão permanentes ( partidos políticos, Estado de Direito, políticas econômicas e sociais) que criem, reconheçam e garantam a igualdade e liberdade dos cidadãos, declaradas sob a forma dos direitos. Em outras palavras, desde sua fundação, a democracia é inseparável da idéia de espaço público.” ( Chauí, 2001, p.12)
Num contexto social, cultural e econômico, onde a legislação coativa contra discriminação se mostra ineficiente no que diz respeito à inserção do negro no mundo do trabalho, relegando a essa população os “postos menos atraentes, mais servis do mercado de trabalho como um todo ou de um determinado ramo de atividade” (Gomes, 2001 apud Jaccoud e Beghin, 2002, p.41), quais seriam as saídas para essa deficiência? Como vislumbrar outros horizontes que não o da desigualdade?
E é neste espaço público que devemos trazer presente a realidade das Políticas Afirmativas e a suas contribuições na superação e combate das desigualdades raciais. Na medida em que a questão racial se impõe à agenda nacional, torna-se fundamental reconhecer que só se combate à desigualdade por diferentes frentes ( Jaccoud e Beghim, 2002, p.41), reativamente e pró – ativamente, ou seja, enfrentando diretamente e indiretamente a discriminação e o racismo na sociedade brasileira.
Outro fator que contribui para o debate em questão é a discordância e a contrariedade existente em alguns setores da sociedade brasileira, bem como na opinião de alguns intelectuais. Segundo Santos (1997) apud Jaccoud e Beghin (2002) é possível identificar alguns argumentos neste debate: a questão da isonomia, a idéia do mérito, o fator da pobreza e o elemento da miscigenação. Além do que é muito comum ainda ouvir vozes discordantes, argumentando que tais políticas aguçariam o conflito racial brasileiro. Enfim, os argumentos contrários devem e vem sendo rebatidos vigorosamente, demonstrando que somente tratando diferentemente os desiguais, é que se pode alcançar uma igualdade distributiva entre os grupos, rebatendo a idéia reducionista do mérito, que não reconhece a excelência que o país pode ganhar incluindo pessoas capazes( pretos e pardos) de desenvolver suas potencialidades, reconhecendo que independente da pobreza real que assola boa parte da população, os negros em razão de sua marginalização histórica e muitas vezes a baixa auto-estima não conseguirão avançar sem uma política especifica de inclusão racial, e por fim as Políticas Afirmativas ligadas a raça devem atingir tanto pretos como pardos pois os dados pesquisados revelam que os dois grupos sofrem dificuldades parecidas.
O debate sobre as Políticas Afirmativas e sua confirmação temporal se torna necessário até porque numa sociedade democrática, uma de suas características fundamentais, seria a compreensão de que “a criação dos direitos” só pode realmente existir na democracia, regime político aberto às mudanças temporais, que faz surgir o novo como parte de sua existência e consequentemente a temporalidade como seu modo de ser (Chauí, 2001, p.11).
Não podemos mais nos esquivar desse precioso e elucidativo debate nacional. Algumas situações, bem como algumas ações têm sido feitas e devem ser apoiadas pela sociedade (o caso das cotas universitárias, por exemplo) se queremos de fato estender a cidadania concreta (e não só de fábula) a nossa população negra, historicamente marginalizada.
O que nas palavras de Roberto DaMata (2001, p.47) se confirmam :
“Não se pode negar o mito. Mas o que se pode indicar é que o mito é precisamente isso: uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de classificação. Assim, o “racismo à brasileira”, paradoxalmente, torna a injustiça algo tolerável, e a diferença, uma questão de tempo e amor. Eis, numa cápsula, o segredo da fábula das três raças...”
Viver a ingenuidade, crer exclusivamente na eficiência de medidas coativas para superar a discriminação e a desigualdade racial no Brasil, “absolutizar” o mérito como única forma de acesso a bens e serviços públicos, é continuar a acreditar no famoso “Mito da Democracia Racial Brasileira” e no mínimo perpetuar a marginalização.
[1] Termo utilizado por Guimarães (1996) apud Jaccoud e Beghin (2002), p.53.
[2] Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas.
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